Esse é um
dos casos mais conhecidos do nosso detetive, pelo fato de perder pela primeira
vez um caso e ainda mais por uma mulher, a nossa conhecida Irene Adler. Ele
Conto:
Um
Escândalo na Boemia (A Scandal in Bohemia) é uma novela policial
de Sir Arthur Conan Doyle protagonizada por Sherlock Holmes e publicado
pela primeira vez na Strand Magazine em Julho de 1891. É conhecido por ser o
primeiro caso que Sherlock Holmes perdeu e para uma mulher. O conto foi
publicado no livro The Adventures of Sherlock Holmes.
Para
Sherlock Holmes, ela é sempre a mulher. Raras vezes o ouvi mencioná-la
de outra maneira. Era de opinião que ela eclipsava e se sobrepunha a todas as
outras mulheres, e isso não porque estivesse apaixonado por Irene Adler. Todas
as emoções, particularmente o amor, aborreciam sua mentalidade admiravelmente
equilibrada, fria e severa. Creio mesmo que era a mais perfeita máquina de
raciocinar e observar que o mundo jamais viu, mas como namorado ficaria numa
posição falsa. Nunca falava das emoções sentimentais, a não ser por brincadeira
e com desdém. Achava que era magnífico observá-las nos outros e excelente
desculpa para ocultar os motivos e ações humanas. Mas, para um calculista como
ele, admitir tais intrusões no seu fino, delicado e tão ajustado temperamento
seria como introduzir um fator de perturbação que podia criar dúvidas nas suas
conclusões mentais. Um grão de areia num instrumento delicado ou uma lente
rachada não se tornariam mais destrutivos do que uma emoção forte numa natureza
como a sua. Entretanto, existia apenas uma mulher para ele, e essa mulher era
Irene Adler, que lhe excitava o cérebro com dúvidas e indagações diversas.
Ultimamente
tenho visto Holmes poucas vezes. Casei-me, e por isso não nos podíamos
encontrar tão freqüentemente como antes. Minha completa felicidade e os
interesses caseiros que começam a crescer ao redor do homem que se tornou dono
do seu próprio estabelecimento eram bastantes para absorver toda a minha
atenção, enquanto Holmes, que detestava qualquer espécie de sociedade com toda
a sua alma boêmia, continuava nos nossos alojamentos da Baker Street, enterrado
no meio dos seus velhos livros, alternando a leitura e o confronto dos anais do
crime no mundo inteiro com as experiências químicas. Continuava, como sempre,
fortemente atraído pelo estudo da criminologia, e ocupava suas imensas
faculdades e poderes extraordinários de observação em seguir as indicações e
desvendar os mistérios que tinham sido abandonados pela polícia como casos
indecifráveis. De vez em quando ouvia-o contar alguns dos seus feitos — de como
fora chamado a Odessa no caso do assassinato de Trepov; dos esclarecimentos que
obtivera a respeito da esquisita tragédia dos irmãos Atkinson em Trincomalee e,
finalmente, a respeito da missão delicada e coroada de tanto êxito que
desempenhara em favor da família real holandesa. Mas, além desses sinais da sua
atividade, dor quais apenas participei como qualquer outro leitor de jornais,
pouco mais soube do meu antigo amigo e companheiro.
Uma noite
— 20 de março de 1888 —, regressava eu de uma visita a um doente (pois voltara
a exercer a minha profissão), quando fui obrigado a passar pela Baker Street.
Ao encarar a inolvidável porta, a qual para mim permanece associada ao meu
tempo de namorado e aos tristes incidentes de Um estudo em vermelho, deu-me
muita vontade de ver Holmes outra vez e saber no que ocupava suas energias
extraordinárias. O apartamento estava iluminado, e, olhando para cima, vi sua
silhueta na cortina; andava para lá e para cá, rápida e preocupadamente, com a
cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Para mim, que conhecia todos os seus
gestos e hábitos, aquela atitude contava a sua própria história. Estava de novo
trabalhando. Tinha se desembaraçado dos papéis e substâncias químicas e estava
firmemente no encalço de algum novo problema. Toquei a campainha, e levaram-me
para o aposento que antigamente eu também havia ocupado.
Recebeu-me
de um modo efusivo. Isso era raro, mas penso que ele estava satisfeito ao
ver-me. Pouco falou, mas com um olhar amigável apontou-me a poltrona, estendeu-me
sua cigarreira e indicou o bar no canto. Depois postou-se diante da lareira e
olhou-me com seu jeito singular e introspectivo.
— O
casamento foi bom para você — disse ele. — Creio, Watson, que você pesa mais
três quilos e meio desde a última vez que o vi.
— Três —
respondi eu.
—
Deveras? Julguei que fosse um pouco mais. Um pouco mais, Watson. Bem, vejo que
está trabalhando de novo, mas não me tinha dito que pretendia voltar à sua
profissão.
— Como é
que sabe então?
— Vejo
que sim, deduzo-o. Como é que sei que tem apanhado muita chuva nestes últimos
dias e que tem uma empregada bronca e descuidada?
— Caro
Holmes — disse eu —, isso é demais. Você certamente teria sido queimado vivo se
tivesse vivido uns século atrás. É verdade que fui passear no campo na
quinta-feira e voltei molhadíssimo, mas como já mudei de roupa não sei como é
que descobriu. Quanto à empregada, é incorrigível, e minha mulher já a
despediu, mas mesmo assim não sei como o adivinhou.
Ele riu
satisfeito e esfregou as mãos nervosamente.
— É a
coisa mais simples — retorquiu. — Vejo que do lado de dentro do seu sapato
esquerdo, justamente onde a luz do fogo incide, o couro está marcado com seis
cortes paralelos. É claro que os cortes foram feitos por alguém que
descuidadamente raspou a beira das solas dos sapatos para remover a lama nelas
grudada. A partir daí compreenderá minhas deduções duplas, de que esteve fora
com mau tempo e que tem uma espécie de empregada particularmente incompetente
para limpar os sapatos. Quanto à sua profissão, se um cavalheiro entrar nos
meus aposentos cheirando a iodofórmio, com uma mancha de nitrato de prata na
ponta do polegar direito e uma saliência na cartola que mostra onde escondeu
seu estetoscópio, devo ser muito obtuso se não o reconheço como membro ativo da
profissão médica.
Não pude
deixar de rir da facilidade com que ele explicou seu processo de dedução.
— Quando
ouço suas razões — disse eu —, as coisas parecem tornar-se tão simples que
facilmente penso conseguir o mesmo, embora fique cada vez mais confuso, até que
você explique seu processo... Todavia, creio que minha vista é tão boa quanto a
sua.
—
Perfeitamente — respondeu ele acendendo um cigarro e atirando-se numa poltrona.
— Você vê, mas não observa. A distinção é clara. Por exemplo, você tem visto
muitas vezes os degraus que sobem do bali até este aposento.
—
Freqüentemente.
— Quantas
vezes?
— Bem,
algumas centenas de vezes.
— Então
quantos são?
—
Quantos? Não sei.
— Muito
bem! Você os viu. Mas não os observou. Aí está a minha vantagem. Eu sei que há
dez degraus, porque vi e observei. Olhe, desde que você está interessado nesses
pequenos problemas e que tem tido a bondade de tomar nota das minhas
experiências, talvez sinta interesse em ler isto. — Lançou-me uma folha de
papel grosso, cor-de-rosa, que estava em cima da mesa.
— Veio
pelo último correio — explicou ele. — Leia-o em voz alta.
O bilhete
não trazia data, nem endereço ou assinatura. Dizia:
"Irá
visitá-lo hoje à noite, às quinze para as oito, um cavalheiro que deseja
consultá-lo sobre de grande importância. Os serviços que prestou a uma das
casas reais européias demonstram que o senhor é de toda a confiança em assuntos
importantes, o que não é exagero. Essa informação a seu respeito recebemos de
toda parte. Esteja, portanto, no seu apartamento a essa hora, e não se sinta
ofendido se a pessoa que o visitar usar máscara".
— Isto de
fato é um mistério — disse eu. — De que pensa você que se trata?
— Ainda
não sei. É arriscado especular antes de ter dados na mão... Inconscientemente
começa-se a torcer os fatos para acomodá-los às teorias, em vez de fazer as
teorias coincidirem com os fatos. Vamos à nota. Que deduz dela?
Examinei
cuidadosamente a caligrafia e o papel.
— O homem
que a escreveu é certamente rico — comecei, procurando imitar o processo que
usava o meu amigo. — Não se pode comprar tal papel por menos de dois xelins e
seis pence o pacote. É reforçado de um modo extraordinário.
—
Extraordinário é a palavra. Não é sequer papel inglês. Coloque-o contra a luz.
Assim
fiz, e vi um e maiúsculo com um g minúsculo, um p e um g grandes com um t
pequeno, tecidos na contextura do papel.
— O que deduz disto? — perguntou
Holmes.
— O nome
do fabricante, sem dúvida; ou melhor, o seu monograma.
— Nada
disso. O g maiúsculo com o t minúsculo significam "Gesellschaft"',
que é "companhia" em alemão. É uma contração como nossa habitual
Cia.; p decerto quer dizer "Papier". Quanto ao Eg, vamos consultar o
nosso dicionário geográfico.
E tirou
da prateleira um pesado volume castanho.
— Cá
estamos, Egiow, Eglonitz, Egria. É um distrito da Boêmia, onde se fala o
alemão, não muito distante de Karlsbad. É notável por ser o lugar da morte de
Wallenstein e pelas suas numerosas fábricas de vidro e de papel. Então, rapaz,
o que você pensa disso? — Brilharam-lhe os olhos, e ele expeliu uma baforada
triunfal do seu cigarro.
— O papel
foi fabricado na Boêmia — disse-lhe eu.
—
Precisamente. E o homem que escreveu o bilhete é um alemão. Repare bem na
construção esquisita da sentença: "Essa informação a seu respeito
recebemos de toda parte". Um francês ou russo não escreveria assim. Só um
alemão é que aplicaria o verbo dessa forma. Falta agora descobrir o que deseja
esse alemão que escreveu em papel da Boêmia, e por que prefere usar máscara a
mostrar o rosto. E ele vem aí, se não me engano, para resolver todas as nossas
dúvidas.
Enquanto
falava, ouviram-se o som agudo de patas de cavalo e o arrastar de rodas contra
a calçada, seguido por um rápido toque de campainha.
Holmes
assobiou.
— Dois,
pelo som — disse ele, olhando pela janela. — Aqui está um carrinho bonito e um
par de belos cavalinhos. Cento e cinqüenta guinéus cada. Nesse caso há
dinheiro, Watson, mesmo que não haja mais nada.
— Penso
que devo ir embora, Holmes.
— Nada
disso, doutor. Fique onde está. Sinto a falta do meu Boswell [1], e o caso
promete ser interessante... Seria pena perdê-lo.
— Mas o
seu cliente...
— Não se
incomode, posso precisar de auxílio, e talvez ele precise também. Lá vem ele.
Sente-se naquela poltrona, doutor, e dê-nos sua melhor atenção.
Um passo
pesado e vagaroso, que se ouvia subir a escada, parou imediatamente em frente à
porta. Depois, uma pancada forte e autoritária.
— Entre!
— disse Holmes.
Logo surgiu um homem que não
tinha menos de dois metros de altura, com peito e músculos de um Hércules.
Vestia-se de um modo tão luxuoso que, na Inglaterra, seria considerado de mau
gosto. As mangas e a frente dupla do casaco eram ornamentadas com largas faixas
de astracã, enquanto a capa azul-escura, que estava sobre os ombros, era
forrada de seda cor de fogo e presa ao pescoço por um broche constituído por um
berilo flamejante. As botas chegavam até metade das pernas e, enfeitadas em
cima com rica pele castanha, completavam a impressão de uma opulência bárbara, sugerida
pela aparência total do visitante. Trazia na mão um chapéu de aba larga, ao
passo que na parte superior do rosto usava uma máscara preta, a qual,
aparentemente, colocara naquele momento, porque a mão ainda a segurava quando
entrou. A julgar pela parte inferior do rosto, parecia um homem de caráter
forte, com lábios grossos e queixo longo e reto, que demonstrava resolução e
até obstinação.
— O
senhor recebeu o meu bilhete? — perguntou em voz gutural e ríspida, com sotaque
fortemente alemão. — Eu lhe disse que viria. — Olhou para nós dois, como que
hesitando a qual devia dirigir-se.
— Tenha a
bondade de se sentar — disse Holmes. — Este é meu amigo e colega, o dr. Watson,
que às vezes me ajuda bondosamente. Com quem tenho a honra de falar?
— Pode
chamar-me conde von Kramm, um nobre da Boêmia. Presumo que este cavalheiro seja
homem honrado e discreto, em quem possa confiar num caso de extrema
importância. Senão, preferiria falar-lhe a sós.
Levantei-me
para sair, porém Holmes pegou-me pela mão e empurrou-me de novo para a
poltrona.
— É para
os dois, ou para nenhum — disse ele. — Pode dizer perante este senhor tudo
quanto tem a dizer a mim.
O conde
encolheu seus largos ombros.
— Então
preciso começar — disse ele — por lhes impor a ambos o maior silêncio a este
respeito durante dois anos; depois o assunto já não terá importância.
Atualmente, não é exagero dizer que é tão importante que pode influenciar a
história da Europa inteira.
— Prometo
— disse Holmes.
— Eu
também.
—
Desculpem-me esta máscara — continuou o nosso estranho visitante. — A augusta
pessoa que me emprega deseja que seu agente não seja conhecido pelo senhor, e
tenho de confessar que o título que há pouco usei não é bem meu.
— Isso eu
já sabia — disse Holmes.
— As
circunstâncias são de grande delicadeza, e é preciso toda a precaução para
abafar o que poderia tornar-se um grande escândalo e comprometer seriamente uma
das famílias reinantes da Europa. Para falar claramente, o assunto implica a
grande casa de Ormstein, reis hereditários da Boêmia.
— Já o
percebi — murmurou Holmes, enfiando-se mais para dentro da poltrona e fechando
os olhos.
Nosso
visitante olhou com surpresa para aquela figura de homem tão lânguido e
indolente, que lhe tinha sido descrito, com toda a certeza, como sendo a pessoa
mais arrasadora e incisiva e o agente mais enérgico da Europa. Holmes abriu os
olhos com vagar e olhou impacientemente o seu gigantesco cliente.
— Se
Vossa Majestade condescendesse em dizer qual é o seu problema — disse ele —,
poderia ajudá-lo melhor.
O homem
pulou da cadeira e andou de um lado para outro na sala, numa agitação
descontrolada. Então, com um movimento de desespero, arrancou a máscara do
rosto e atirou-a no chão.
— Tem
razão — exclamou. — Sou o rei. Por que devo eu procurar esconder-me?
— Por
quê, realmente? — murmurou Holmes. — Vossa Majestade não tinha ainda falado e
eu já sabia que a pessoa com quem conversava era Wilhelm Gottsreich Sigismond
von Ormstein, grão-duque de Casell-Falstein e rei hereditário da Boêmia.
— Mas o
senhor deve compreender — disse o nosso estranho visitante, sentando-se outra
vez e passando a mão pela fronte alta e branca —, o senhor deve compreender
muito bem que não estou habituado a tratar de negócios pessoalmente. Todavia, o
assunto é tão delicado que não pude confiá-lo a um agente para não me colocar
em seu poder. Vim incógnito de Praga especialmente para consultá-lo.
— Então
tenha a bondade de me consultar — disse Holmes, fechando de novo os olhos.
— Os
fatos resumidos são estes: há uns cinco anos passados, durante uma longa estada
em Varsóvia, travei relações com a conhecida aventureira Irene Adler. O nome
com certeza é-lhe muito familiar.
— Tenha a
bondade de procurar o nome dela no meu fichário, doutor — murmurou Holmes, sem
abrir os olhos.
Durante
muitos anos ele adotara o sistema de arquivar todos os assuntos relativos aos
homens e às coisas, e assim era difícil que se mencionasse um caso ou uma
pessoa sobre a qual ele não pudesse dar alguma informação. Encontrei a
biografia de Irene entre a de um rabino hebreu e a de um comandante de esquadra
que havia escrito uma monografia sobre os peixes dos mares profundos.
—
Deixe-me ver — disse Holmes. — Hum! Nasceu em Nova Jersey no ano de 1858.
Contralto... hum! La Scala, hum! Prima-dona imperial, Ópera de Varsóvia... Sim!
Retirou-se do palco... ah! Mora em Londres, é isso mesmo! Percebo que Vossa
Majestade se comprometeu com essa jovem, escreveu-lhe algumas cartas e agora
deseja reavê-las, não é verdade?
—
Exatamente! Mas como...
— Houve
casamento clandestino?
— Não.
— Nenhum
papel legal ou certificado?
— Nenhum.
— Então
não posso compreender Vossa Majestade. Se essa jovem quisesse apresentar as
cartas num ato de extorsão ou com qualquer outro propósito, como é que poderia
provar a autenticidade das mesmas?
— Há a
letra.
— Basta,
basta! Falsificação.
— Meu
papel de cartas particular.
—
Roubado.
— E meu
selo privado?
—
Imitação.
— E minha
fotografia...
—
Comprada.
— Estamos
os dois na fotografia.
— Oh!
mau! Isso é grave. Realmente Vossa Majestade cometeu uma grande imprudência.
— Eu
estava doido... doido.
— Vossa
Majestade comprometeu-se seriamente.
— Eu era
apenas o herdeiro naquela época. Era jovem, mas agora tenho trinta anos.
— Precisa
recuperar as cartas.
— Já
tentamos, sem êxito.
— Vossa
Majestade precisa pagar. Devem ser compradas.
— Ela não
as vende.
—
Roubadas, então.
—
Experimentou-se isso cinco vezes. Em duas ocasiões os ladrões foram pagos por
mim e reviraram-lhe a casa. Uma vez desviamos a bagagem dela quando viajava.
Duas vezes lhe preparamos armadilhas. Mas tudo sem resultado.
— E nem
sinal!...
— Nada,
absolutamente nada.
Holmes
riu-se:
— É
realmente um problema engraçado — disse ele.
— Mas
muito sério para mim — replicou o rei em tom de reprovação.
— Muito
mesmo. Mas o que é que ela tenciona fazer com a fotografia?
—
Arruinar-me.
— Mas
como?
— Estou
para me casar.
— Já ouvi
isso.
— Com
Clotilde Lothman von Saxe-Meningen, segunda filha do rei da Escandinávia.
Talvez o senhor conheça os princípios severos da família da minha noiva. Ela
própria é a delicadeza personificada. Qualquer sombra de dúvida a meu respeito
acabaria com tudo.
— E Irene
Adler?
— Ameaça
mandar-lhe a fotografia. E o fará. Sei que o fará. O senhor não a conhece; tem
uma alma de aço. O rosto da mais bela das mulheres e a mentalidade dos homens
mais resolutos. Para que eu não me case com outra mulher, não há nada que ela
não faça, nada.
— Vossa
Majestade tem certeza de que ela ainda não mandou a fotografia?
— Tenho
certeza.
— Por
quê?
— Porque
ela afirmou que a mandaria no dia em que o noivado fosse proclamado
publicamente. Isso será na próxima segunda-feira.
— Oh,
então temos três dias ainda — disse Holmes, bocejando. — É bom, porque tenho um
ou dois assuntos de importância para tratar presentemente. Com certeza Vossa
Majestade ficará em Londres por enquanto...
—
Certamente. Estarei no Langham Hotel, sob o nome de conde von Kramm.
— Então
lhe escreverei para informá-lo do desenrolar do caso.
— Faça o
favor. Ficarei à espera ansiosamente.
— E
quanto às despesas?
— O
senhor tem carta branca.
—
Inteiramente?
—
Digo-lhe que daria uma das províncias do meu reino para reaver aquela
fotografia.
— E para
as despesas de momento?
O rei
tirou uma bolsa de camurça de sob a capa e atirou-a em cima da mesa.
— Aí estão
trezentas libras em ouro e setecentas libras em notas — disse ele.
Holmes
assinou um recibo numa folha de papel da sua caderneta de notas e entregou-a ao
rei.
— E o
endereço de mademoiselle? — perguntou ele.
— Vila Briony, Serpentine Avenue, St. John's Wood.
Holmes
tomou nota.
— Mais
uma pergunta — disse ele. — Era posada, a sua fotografia?
— Era.
— Então,
boa noite, Majestade. Espero que em breve tenhamos boas notícias para lhe dar.
E boa noite, Watson — acrescentou, enquanto as rodas do carro rolavam rua
abaixo. — Faça o favor de vir aqui amanhã às três horas da tarde, pois gostaria
de conversar com você sobre este assunto.
Precisamente
às três horas do dia seguinte, estava eu na Baker Street, mas Holmes ainda não
tinha voltado. A proprietária informou-me que ele saíra logo depois das oito
horas. Sentei-me ao lado do fogo com a intenção de esperá-lo pelo tempo que
fosse necessário. Tinha profundo interesse pelo caso, porque, embora isento das
circunstâncias desagradáveis e estranhas ligadas aos dois crimes que já
mencionei, a natureza do assunto e a posição elevada do seu cliente
proporcionavam ao caso uma característica muito especial.
Além de tudo, a forma acertada
como meu amigo tratava o assunto fazia com que eu tivesse prazer em estudar seu
sistema e seguir os métodos rápidos e sutis com que desenredava os mais
intrincados mistérios. Tão habituado estava eu ao seu invariável sucesso, que a
mera possibilidade de ele falhar nunca me passou pela cabeça.
Eram
quase dezesseis horas quando um empregado de aspecto beberrão, maltrapilho,
barbado, com o rosto inchado e as roupas imundas, entrou no apartamento. Embora
habituado ao poder maravilhoso que meu amigo tinha de se disfarçar, tive de
olhar três vezes antes de ter a certeza de que era ele; com um aceno de cabeça,
entrou no quarto, donde emergiu cinco minutos depois, vestido respeitavelmente
com o habitual terno de casimira. Enfiando as mãos nos bolsos, estendeu as
pernas diante do fogo e desatou a rir por alguns minutos.
— Bem,
realmente — exclamou, e depois engasgou-se; riu-se outra vez, até que foi
obrigado a encostar-se para trás na cadeira, exausto de tanto rir.
— O que é
isso?
— É muito
engraçado. Afianço-lhe que nunca poderá adivinhar como passei esta manhã, ou o
que acabei de fazer.
— Não
posso imaginar, mas suponho que andou espreitando os hábitos e talvez a casa da
srta. Irene Adler.
— Certo,
mas o resultado foi interessante. Vou lhe contar. Saí de casa pouco depois das
oito, hoje de manhã, vestido de cocheiro, à procura de serviço. Há muita
simpatia e maçonaria entre os cocheiros. Fingindo ser um deles pode-se saber
tudo o que é necessário saber. Encontrei logo a Vila Briony. É uma casinha
bijou, com uma horta atrás, mas a frente dá para a rua. Tem fechadura moderna
na porta. Ao lado direito fica a vasta sala de estar, bem mobiliada, com
janelas grandes que chegam quase ao chão e que qualquer criança poderia abrir
com facilidade. Nos fundos não há nada de extraordinário, a não ser que, de
cima da cocheira, pode-se chegar à janela do corredor. Dei uma volta ao redor
da casa e examinei-a bem, mas sem notar mais nada de interessante. Desci
vagarosamente a rua, e reparei, enquanto esperava, que há uma fila de cocheiras
numa viela para onde dá um dos muros do jardim. Ajudei os cocheiros a escovar e
limpar os cavalos, e recebi de gratificação dois pence, um copo de cerveja,
duas pitadas de tabaco e todas as informações de que precisava a respeito da
srta. Adler, para não falar de coisas a respeito de meia dúzia de pessoas das
vizinhanças que não me interessavam mas cujas biografias fui obrigado a ouvir.
— E com
referência a Irene Adler? — perguntei eu.
— Oh! Ela
já virou a cabeça de todos os homens que andam por aí. É a pessoa mais refinada
deste planeta, segundo dizem todos os empregados das cocheiras da Serpentine.
Vive sossegadamente, cantando em concertos, sai a passeio de carro todos os
dias às dezessete horas e volta às dezenove em ponto para o jantar. Tem só um
visitante masculino, mas suas visitas são freqüentes. Ele é moreno, simpático e
arrojado; vai visitá-la uma ou duas vezes por dia. Chama-se Godfrey Norton, e é
advogado. Veja como é conveniente ter cocheiros por confidentes. Eles o levaram
dúzias de vezes das cocheiras da Serpentine para a casa dele, e sabiam tudo a
seu respeito. Depois de ter ouvido o que tinham para contar, comecei a passear
outra vez perto da Vila Briony e a maquinar meu plano de campanha.
"Esse
Godfrey Norton é, evidentemente, um fator importante no caso. É advogado. Isso
é coisa séria. Que relações haverá entre eles? Será ela uma cliente, amiga ou
apenas companheira? Se for cliente, deve, muito provavelmente, ter-lhe entregue
a fotografia para guardar, mas só nesse caso. Conforme as circunstâncias, eu
continuaria o meu trabalho na Vila Briony ou transferiria minha atenção para os
alojamentos do cavalheiro. Sinto que o estou cansando com estes detalhes, mas é
um ponto delicado, e tenho de expor-lhe minhas dificuldades para que você possa
compreender a situação.
— Estou
prestando atenção — respondi-lhe.
— Ainda estava
cogitando nisso tudo, quando chegou um carro descoberto à residência, e dele
saltou um jovem. Era atraente, moreno, nariz aquilino e usava bigode,
evidentemente o homem de quem me haviam falado. Parecia estar com muita pressa,
pois gritou para o cocheiro que esperasse e passou rapidamente pela empregada
que lhe abrira a porta, com ar de pessoa familiarizada na casa.
"Permaneceu
lá dentro meia hora, mais ou menos, e pude vê-lo através da janela da sala,
andando, gesticulando e falando com grande excitação. Quanto a Irene, não a vi.
Daí a pouco ele saiu, parecendo ainda mais apressado, e quando saltou para
dentro do carro tirou do bolso um relógio de ouro e olhou-o com atenção.
— Corra
como um raio — gritou —, e passe primeiro pela joalheria Gross & Hankey na
Regent Street, e depois pela Igreja de Santa Mônica, na Edgware Road. Meia
libra se o fizer em vinte minutos.
"Lá
se foram, e estava eu pensando se não faria bem em segui-los quando começou a
subir a viela uma carruagem vistosa, cujo cocheiro ainda não havia abotoado o
paletó. Tinha a gravata torta, e as correias dos animais estavam mal colocadas
e não afiveladas. Mal o carro parou, Irene correu da porta da casa para dentro
dele. Só pude vê-la um instante, mas é linda, a espécie de mulher por quem um
homem dá até a vida.
"—
Para a Igreja de Santa Mônica, John — disse ela —, e meia libra se chegar lá em
vinte minutos.
"Aquilo
era bom demais, e eu não podia perdê-la, Watson; estava indeciso se devia
segui-la colocando-me na traseira do mesmo veículo, quando passou outro carro.
O cocheiro olhou-me duas vezes antes de me aceitar como passageiro, tão feio e
maltrapilho eu estava, mas antes que me pudesse recusar, pulei para dentro e
gritei: — Para a Igreja de Santa Mônica, e meia libra se chegar lá em vinte
minutos. — Faltavam vinte e cinco minutos para o meio-dia, e era fácil perceber
o que ia acontecer.
"Meu
cocheiro simplesmente voou, e não me lembro de jamais ter viajado tão depressa,
mas mesmo assim os outros já tinham chegado; os cavalos dos dois carros estavam
cobertos de suor em frente à porta da igreja. Não havia outras pessoas além
daquelas que eu seguira e do vigário, vestido com sua sobrepeliz de
eclesiástico e que parecia discutir com eles. Estavam os três juntos em frente
ao altar; fui andando vagarosamente pela nave como podia fazer qualquer vadio
que tivesse entrado por acaso. De repente, para surpresa minha, os três se
viraram para mim e Godfrey Norton veio correndo na minha direção.
"—
Graças a Deus! — exclamou ele. — Você servirá. Venha! Venha!
"—
Para quê? — perguntei eu.
"—
Venha, homem, venha, por três minutos só, do contrário não será legal.
Fui meio empurrado até o altar e,
antes de saber o que se passava, percebi que murmurava as frases que me eram
proferidas aos ouvidos e prometia coisas que não compreendia. Assistia,
praticamente, ao casamento de Irene Adler, solteira, e de Godfrey Norton,
solteiro. Acabou-se tudo num instante, e de um lado estava o jovem,
agradecendo-me, e de outro a jovem, enquanto o vigário sorria à minha frente. Foi
a posição mais absurda em que jamais me achei, e foi a recordação disso tudo o
que me fez rir agora. Parece-me que havia qualquer irregularidade quanto à
licença de casamento, e que o clérigo se recusava a casá-los caso não houvesse
testemunha. Minha chegada naquele momento salvou a desagradável situação de o
noivo ter de sair para a rua à procura de uma testemunha. O rapaz deu-me uma
libra, que pretendo usar presa à minha corrente de relógio como lembrança do
fato."
— Foi uma
reviravolta inesperada nos fatos — disse eu. — Então, e depois?
— Bem, vi
que meus planos estavam seriamente ameaçados. Parecia que o casal iria embora
imediatamente, e portanto eu precisava agir pronta e energicamente. No entanto,
à porta da igreja separaram-se, indo ele para o foro e ela regressando para
casa. "Vou passear pelo parque como sempre às dezessete horas",
disse-lhe ela quando ia saindo. Não ouvi mais nada. Foram cada um para o seu
lado, e eu vim preparar os meus planos.
— Quais
são eles?
— Um
pouco de carne fria e um copo de cerveja em primeiro lugar — disse ele, tocando
a campainha. — Estive ocupado demais para me lembrar de comer, e é possível que
esteja ainda mais ocupado à tarde. A propósito, doutor, vou precisar da sua
cooperação.
— Terei
muito prazer em dá-la.
— Não se
importa de contrariar as leis?
—
Absolutamente nada.
— Nem de
se arriscar a ser preso?
— Não,
num caso justo.
— O caso
é excelente!
— Então
estou ao seu dispor.
— Tinha a
certeza de que poderia contar com você.
— Mas o
que quer que eu faça?
— Depois
que a sra. Turner trouxer a bandeja, explico-lhe tudo. Agora — disse ele,
enquanto se virava para comer a comida simples que a hospedeira havia trazido
—, preciso falar enquanto como, porque temos pouco tempo. São quase dezessete
horas, e dentro de duas horas devemos estar em ação. A srta. Irene, isto é,
sra. Norton, volta sempre do seu passeio às dezenove horas; temos de estar na
Vila Briony à espera dela.
— E
depois?
— Deixe
isso por minha conta. Já resolvi o que se deve fazer. Há somente um ponto em
que preciso insistir, Você não deve interferir, seja qual for o resultado.
Compreende?
— Tenho
de ficar neutro?
— E não
fazer nada, absolutamente nada. Talvez surjam alguns aborrecimentos, mas não se
meta; hão de acabar por me levar para dentro de casa. Quatro ou cinco minutos
depois abrirão a janela da sala, e você deve colocar-se bem embaixo dela.
— Está
bem.
— Fique
olhando para mim, porque poderá ver-me lá de fora.
— Muito
bem!
— Quando
eu levantar a mão, assim, você atirará para dentro aquilo que vou lhe dar, e ao
mesmo tempo dará o alarme de "fogo". Está entendido?
—
Perfeitamente.
— Não é
nada de perigoso — prosseguiu ele, tirando do bolso um objeto em feitio de
charuto —, é simplesmente um rojão comum que os encanadores usam, selado em
cada ponta para torná-lo automático. Seu trabalho é apenas esse. Quando gritar
"fogo", várias pessoas repetirão o grito. Então vá até o fim da rua,
onde irei ter com você dentro de dez minutos. Posso estar certo de que
esclareci bem tudo?
—
Permaneço neutro e aproximo-me da janela para olhar para você e, ao ver o tal
sinal, lanço janela adentro este objeto, dou alarme de incêndio e vou esperá-lo
na esquina da rua.
—
Justamente.
— Então pode
contar comigo.
—
Excelente. Creio que já está na hora de me preparar para a parte que me cabe.
Desapareceu
no quarto, e poucos minutos depois voltou vestido como um amável sacerdote. O
chapéu preto de aba larga, as amplas calças, a gravata branca, o sorriso
simpático e uma aparência geral de curiosidade benevolente e compenetrada eram
tais que só o sr. John Hare os poderia ter igualado. Não era apenas que Holmes
tivesse trocado de roupa; sua expressão, seu modo, sua própria alma pareciam
transformar-se em cada novo papel que representava. O palco perdeu um excelente
ator, assim como a ciência perdeu um ativo investigador quando ele se tornou
especialista em criminologia.
Eram dezoito horas e trinta
quando partimos da Baker Street. Faltavam ainda dez minutos para a hora marcada
quando chegamos à Serpentine Avenue. Já era a hora do lusco-fusco, e as
lâmpadas das ruas começavam a ser acesas enquanto passávamos em frente da Vila
Briony, à espera da sua moradora. Era uma casa igual à que eu tinha imaginado pela
descrição sucinta que Holmes me havia feito, mas o local não era tão isolado
como eu esperava. Pelo contrário, para uma rua pequena com vizinhança
sossegada, achei-a muito animada. Havia um grupo de homens pobremente vestidos,
fumando e rindo numa esquina, um amolador de facas com sua maquineta, dois
guardas namorando uma empregada e diversos jovens bem-vestidos que caminhavam
descuidadamente, de charuto na boca.
— Como vê
— disse Holmes, enquanto passávamos em frente à casa —, este casamento
simplifica um pouco o caso. Agora a fotografia torna-se uma arma de dois gumes.
Talvez Irene seja contra a divulgação da fotografia, pois se for vista por
Godfrey Norton, o caso é igual ao do nosso cliente, isto é, é como se fosse
vista pela princesa. Agora a questão é esta: onde encontraremos a fotografia?
— É
mesmo, onde a encontraremos?
— Ela não
deve trazê-la consigo, porque é de um tamanho grande. Grande demais para ser
escondida na roupa de uma mulher. Ela também sabe que o rei é capaz de lhe
armar uma emboscada e mandar examinar tudo o que leva. De fato, já fizeram isso
por duas vezes. Portanto, sabemos que não a traz consigo.
— Mas,
então, onde a deixa?
—
Entregue ao banqueiro ou ao advogado. Há essa dupla possibilidade. Mas não
acredito nela. As mulheres são muito dissimuladas e têm uma forma particular de
guardar segredos. Por que haveria ela de entregar a fotografia a outra pessoa,
se se sente competente para guardá-la? Além disso, não se esqueça de que ela
pretende utilizar a fotografia daqui a poucos dias. Deve estar onde possa ser
apanhada facilmente. Deve estar em sua própria casa.
— Mas já
tentaram roubá-la duas vezes.
— Que
importa! Não souberam procurar.
— Mas
como você vai procurá-la?
— Eu não
vou.
— Então o
que pretende fazer?
— Vou
fazer com que ela me mostre onde está.
— Ela se
recusaria a isso, com certeza.
— Não
será possível. Mas, escute, ouço o rodar do carro dela. Agora cumpra as minhas
ordens.
Enquanto
falava, a luz das lâmpadas do carro surgiu à curva da avenida. Era um carrinho
bonito o que parou diante da Vila Briony. Ao parar, um dos ociosos da esquina
avançou para abrir a porta, à espera de receber uma moeda, mas foi empurrado
por outro dos vagabundos que correra no mesmo instante, com a mesma intenção.
Houve uma luta feroz, engrossada pêlos dois guardas, que apoiaram um dos
brigões, e pelo amolador, que resolveu apoiar o outro. Houve uma cacetada, e
num instante a dama que descera do carro estava no centro de uma roda de homens
que lutavam uns contra os outros a socos e cacetadas. Holmes correu em direção
à jovem para protegê-la, mas justamente no instante em que chegou perto dela
deu um grito e caiu ao chão, o sangue a escorrer-lhe pela face. A queda foi
devida a terem os guardas corrido numa direção e os contendores na outra,
enquanto um número de pessoas bem-vestidas que tinham presenciado a luta sem se
intrometer se aproximaram para ajudar a senhora e o homem ferido. Irene Adler,
como ainda a chamarei, tinha subido correndo os degraus; porém, uma vez lá em
cima, com sua figura esbelta em silhueta e contra as luzes do hall, virando-se
para a rua, perguntou:
— Está
muito ferido o pobre homem?
— Está
morto — gritaram vários dos presentes.
— Não,
não, ainda está vivo — bradou outro —, mas morrerá antes que possa chegar a um
hospital.
— É um homem corajoso — disse uma
mulher. — Teriam tirado o relógio e a bolsa da senhora se não fosse ele. Foi um
bando de malvados. Ah! Já está respirando?
— Mas ele
não pode ficar deitado na rua. Podemos levá-lo para dentro, senhora?
—
Certamente. Tragam-no para a sala de estar, onde há um sofá confortável. Por
aqui, façam o favor.
Vagarosa
e solenemente, levaram-no para dentro da Vila Briony e deitaram-no na sala, num
sofá, enquanto eu observava os acontecimentos, do meu lugar perto da janela.
Acenderam-se
as lâmpadas, mas as cortinas continuavam abertas, e assim pude ver Holmes
deitado no sofá. Não sei se ele teve vergonha da farsa, mas sei que nunca me
senti tão envergonhado de mim próprio como quando vi aquela criatura, contra
quem conspirávamos, ajudar o homem ferido com tanta graça e bondade. Todavia,
era uma traição das piores abandonar Holmes agora. Portanto, endureci meu
coração e peguei o foguete que trazia debaixo da capa. Em todo caso, pensei,
não queremos prejudicá-la, estamos apenas fazendo o possível para que não
prejudique outra pessoa.
Holmes
erguera-se no sofá, e vi-o fazer um sinal como se quisesse mais ar. Uma
empregada atravessou a sala correndo e abriu a janela. No mesmo instante vi-o
levantar a mão e, a este sinal, atirei meu foguete para dentro da sala, com o
grito de "fogo!" Mal a palavra saiu dos meus lábios, a multidão de
espectadores, os elegantes e os malvestidos — cavalheiros, cocheiros e
empregadas — uniram suas vozes num só grito: "Fogo!" Rolos de fumaça
ondulavam pela sala e para fora da janela. Vi num relance vultos alarmados
correndo, e um momento depois ouvi a voz de Holmes dizendo que era um alarme
falso. Esgueirando-me através da multidão que gritava, fui até a esquina da
rua, e dez minutos depois alegrei-me ao sentir Holmes pegar no meu braço.
Estava aliviado por poder abandonar aquela cena barulhenta. Ele andou depressa
e em silêncio por alguns minutos, até que entramos numa das ruas calmas em
direção à Edgware Road.
— Fez
tudo muito bem feito, doutor — disse-me ele. — Não podia ter sido melhor. Está
tudo bem.
— Tem a
fotografia?
— Já sei
onde está.
— E como
a descobriu?
— Ela a
mostrou para mim, como eu lhe disse que havia de fazer.
— Não
compreendo.
— Não
quero fazer mistério — disse ele, rindo. — O caso foi muito simples. Com
certeza percebeu que todos os que lá estavam eram cúmplices. Foram todos
contratados para a ocasião.
—
Calculei isso.
— Então,
quando o barulho começou, eu tinha um pouco de tinta vermelha na mão. Corri
para a frente e caí, bati no rosto com a mão e transformei-me num pobre ferido.
É um truque velho.
— Isso
também percebi.
—
Levaram-me para dentro. Ela não podia deixar de permitir que o fizessem, não é
verdade? E fui para aquela sala onde suspeitei que estava a fotografia.
Deitaram-me no sofá, eu pedi ar, abriram a janela, e você teve a sua
oportunidade.
— Como é
que isso o ajudou?
— Era
muito importante. Quando uma mulher pensa que a casa está pegando fogo,
instintivamente corre para salvar o objeto mais precioso que possui. É um
impulso perfeitamente irresistível, e eu tenho me aproveitado desse fato mais
de uma vez. No caso do escândalo de Darlington, foi de grande utilidade, e
também me serviu no problema do Castelo de Arnsworth. A mulher casada corre em
auxílio do filhinho, a solteira pega a caixa de jóias. Para mim, nossa cliente
de hoje não tinha nada que estimasse mais do que aquilo que procuramos.
Tentaria salvá-lo. O alarme foi muito bem-feito. A fumaça e os gritos foram
suficientes para enervar um cérebro de aço. Ela reagiu magnificamente. A
fotografia está num armariozinho atrás de um painel, por cima do cordão da
campainha, à direita. Ela chegou lá num instante, e percebi que ia retirá-la.
Mas quando gritei que era alarme falso, ela a repôs no armário, olhou para o
rojão queimado, saiu da sala e não a vi mais. Levantei-me e, pedindo desculpas,
deixei a casa, hesitando ainda sobre se devia procurar obter logo a fotografia,
mas o cocheiro tinha entrado e, como me olhava fixamente, pareceu-me melhor
esperar. A precipitação poderia arruinar tudo.
— E
agora? — perguntei eu.
— Nossa
busca está praticamente terminada. Farei uma visita à senhora, na companhia do
rei e na sua, se quiser nos acompanhar. Introduzir-nos-ão na sala de estar para
aguardarmos a senhora, mas é possível que quando ela entrar não nos encontre,
nem à fotografia. Será uma satisfação para Sua Majestade recuperá-la por suas
próprias mãos.
— A que
horas fará essa visita?
— Às oito
da manhã. Ela ainda não terá levantado, e assim teremos o campo livre. Além
disso, precisamos não perder tempo, porque este casamento pode modificar
completamente a vida dela e os seus hábitos. Vou telegrafar ao rei sem demora.
Chegamos à Baker Street e paramos
à porta. Ele procurava a chave no bolso quando alguém que passava disse:
— Boa
noite, sr. Sherlock Holmes.
Havia
diversas pessoas na calçada no momento, mas o cumprimento parecia ter partido
de um rapazinho vestido com uma capa, que passou apressadamente.
— Já ouvi
aquela voz — disse Holmes, perscrutando a escuridão da rua. — Quem terá sido?
Dormi na
Baker Street naquela noite, e estávamos tomando o nosso café com torradas
quando entrou apressadamente o rei da Boêmia.
— O senhor
a apanhou realmente? — gritou ele, segurando os ombros de Holmes e olhando-o,
aflito.
— Ainda
não.
— Mas tem
esperanças de apanhá-la?
— Tenho.
— Então
vamos, estou impaciente por partir.
—
Precisamos de um coche.
— Não,
meu carro está à espera.
— Isso
simplifica bastante o caso.
Descemos
e mais uma vez fomos à Vila Briony.
— Irene
Adler está casada — disse Holmes.
— Quando
se casou?
— Ontem.
— Mas com
quem?
— Com um
advogado inglês chamado Norton.
— Mas ela
não o ama!
— Espero
que sim.
— E por
que espera o senhor que sim?
— Porque
com isso pouparemos muitos temores no futuro a Vossa Majestade. Se a esposa ama
o marido, não ama Vossa Majestade, e assim não há razão para interferir nos
seus planos.
— Isso é
verdade, todavia... Bem, gostaria que ela fosse da minha raça e posição. Que
elegante rainha teria sido! — Calou-se, e o silêncio continuou até que paramos
na Serpentine Avenue.
A porta
da Vila Briony estava aberta, e uma senhora idosa encontrava-se nos degraus.
Fitou-nos quando descemos do carro e em voz sarcástica perguntou:
— Sr.
Sherlock Holmes, creio?
— Sim,
sou o sr. Holmes — respondeu o meu companheiro, olhando surpreso para ela.
—
Deveras! Minha patroa disse que talvez o senhor viesse fazer-lhe uma visita.
Ela foi embora com o marido hoje de manhã, no trem que parte às cinco e quinze
de Charing Cross para o continente.
— O quê?
A senhora quer dizer que ela deixou a Inglaterra? — exclamou Holmes, surpreso e
desapontado.
— Sim, e
nunca mais voltará.
— E os
papéis? — perguntou o rei. — Então está tudo perdido.
— Vamos
ver. — Holmes entrou bruscamente na casa e dirigiu-se à sala, seguido pelo rei
e por mim. A mobília estava em desordem, as gavetas, abertas como se a senhora
as tivesse esvaziado para fugir. Holmes foi direto à corda da campainha e abriu
a portinhola do armário. Enfiando a mão dentro dele, de lá retirou um retrato e
uma carta. O retrato era de Irene Adler em traje de soirée. A carta estava
endereçada a "Sherlock Holmes, para ser entregue quando procurada por
ele". Meu amigo abriu-a e nós a lemos juntos. Estava datada da meia-noite
do dia anterior e dizia:
"Meu
caro Sherlock Holmes,
O senhor
realmente representou muito bem a farsa e enganou-me completamente; até depois
do alarme de 'fogo' não tive a menor suspeita. Mas quando percebi que me havia
traído, comecei a pensar. Eu tinha sido avisada contra o senhor há tempos, e
sabia que, se o rei empregasse qualquer agente, haveria certamente de ser o
senhor. Deram-me o seu endereço, e, apesar de tudo, o senhor fez com que eu me
traísse e assim ficou sabendo o que queria descobrir. Mas depois de ter tido
suspeitas, achei difícil pensar mal de um velho e bondoso clérigo. Mas, não se
esqueça, também sou atriz experiente. Roupa masculina não é novidade para mim,
e muitas vezes me aproveito da liberdade que ela me proporciona. Mandei John, o
cocheiro, vigiá-lo, subi para o quarto, vesti a roupa de passeio, como a chamo,
e desci logo depois que o senhor saiu. Bem, segui-o então até sua porta, para
ter a certeza de que verdadeiramente eu era objeto de interesse para Sherlock
Holmes. Aí, um tanto imprudentemente, saudei-o com um 'boa-noite' e fui até o
foro ver meu marido. Ambos achamos que a melhor coisa a fazer seria a fuga,
quando perseguidos por tão notável antagonista: por isso, encontrará o ninho
vazio ao chegar aqui amanhã. Quanto à fotografia, seu cliente pode ficar
descansado, sou amada e adorada por um homem muito melhor do que ele. O rei
pode fazer o que quiser, que não será incomodado por uma pessoa que ele
injuriou cruelmente. Guardarei a fotografia somente para minha segurança, e
para conservar uma arma que sempre me há de salvaguardar de qualquer cilada que
ele possa armar no futuro. Deixo outra fotografia — talvez ele a queira possuir
—, e sou, caro Sherlock Holmes,
muito
sinceramente,
Irene
Norton, née Adler."
— Que
mulher! Oh, que mulher! — gritou o rei da Boêmia, quando acabamos de ler. — Eu
não lhes disse que era esperta e decidida? Pena que não seja da minha posição!
— Minha
dedução disto tudo é que ela parece ser de um nível muito diferente do de Vossa
Majestade — disse Holmes friamente. — Sinto não ter podido dar aos seus
negócios uma conclusão mais satisfatória.
— Pelo
contrário, meu caro senhor — disse o rei —, nada poderia ser melhor. Sei que a
palavra dela é inviolável. A fotografia agora está tão segura como se tivesse
sido atirada ao fogo.
—
Regozijo-me que Vossa Majestade diga isso!
—
Devo-lhe muito, senhor. Diga-me de que modo posso recompensá-lo. Este anel... —
e tirou do dedo um anel de esmeraldas que colocou na palma da mão.
— Vossa
Majestade tem uma coisa a que eu daria mais valor ainda — disse Holmes.
— O
senhor a terá, diga o que é.
— Esta
fotografia.
— A
fotografia de Irene! — exclamou ele. — Com certeza, se a deseja.
—
Agradeço a Vossa Majestade. Não há nada mais a dizer sobre o assunto. Tenho a
honra de desejar-lhe um muito bom dia. — Curvou-se e, virando-se, sem reparar
na mão que o rei lhe estendia, saiu comigo em direção ao seu apartamento.
E foi
assim que o reino da Boêmia foi ameaçado por um grande escândalo e que os
melhores planos de Sherlock Holmes foram frustrados pela sagacidade de uma
mulher. Ele antigamente zombava da esperteza das mulheres, mas ultimamente não
o tenho ouvido dizer mais nada. E quando se refere àquele retrato, é sempre sob
o título honroso de a mulher.
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